Hannah Ryder, CEO da consultoria independente Development Reimagined, defende financiamento sustentável e de longo prazo para impulsionar a infraestrutura africana e promover o desenvolvimento econômico global. Ryder apresentou as propostas em entrevista exclusiva ao site G20 Brasil, destacando a importância de uma abordagem conjunta e corajosa para solucionar a crise da dívida no continente.
A União Africana é o mais novo integrante pleno do G20. Sua presença no grupo traz uma série de questões que as maiores economias do mundo precisam considerar para planos de desenvolvimento econômico na região, de curto e médio prazo. A economista queniana Hannah Ryder, CEO da Development Reimagined, concedeu entrevista exclusiva para o site G20 Brasil onde destacou a urgência de abordagens inovadoras para enfrentar a crise da dívida africana.
Com um currículo que inclui décadas de experiência em políticas de desenvolvimento e colaborações internacionais, principalmente entre a China e países africanos, Ryder enfatizou a necessidade de financiamento sustentável e de longo prazo para que os países do continente possam investir em infraestrutura e promover o crescimento econômico.
Propostas como a criação de um clube de mutuários e a ampliação das cotas do FMI são apresentadas como soluções viáveis. A economista também ressalta a importância de reformar a sustentabilidade da dívida, permitindo que os países tenham acesso a financiamentos mais baratos e adequados às suas realidades econômicas. A liderança brasileira no G20, especialmente com a participação plena da União Africana, representa uma oportunidade inédita para implementar medidas que impulsionam o desenvolvimento no continente com reflexos positivos para todos os países.
Hanna participou em junho, como convidada, da reunião sobre Arquitetura Financeira Internacional em Fortaleza, no estado do Ceará. A seguir, saiba mais sobre o pensamento e propostas da economista.
Dívida externa africana e possíveis soluções
O patamar da dívida da África sobre o PIB atualmente é o mesmo que o da década de 1980. Isso significa que em termos proporcionais à dívida externa total no mundo, o continente africano tem cerca de 10%. É muito difícil para os países africanos gerenciarem esse nível de dívida, porque muitas delas requerem pagamento antecipado ou imediato. Precisamos encarar a questão de como criar mais prazo. Muitos países do continente precisam aumentar a dívida para crescer, especialmente com investimento em infraestrutura.
É realmente oportuno pensar nessas questões, trabalhar juntos para tentar encontrar soluções. Representando a Development Reimagined, apresento possíveis soluções que o G20 poderia considerar. Uma é um clube de mutuários que trabalham juntos para reunir recursos e juntar seus patrimônios (ativos ou garantia oferecidos como proteção em transações) para arrecadar novos financiamentos mais baratos e concessionais.
Outra solução é dobrar as cotas do FMI para os países africanos, para que eles possam ter acesso ao financiamento de liquidez, quando necessário, e especialmente onde há desafios externos. A terceira ideia é uma reforma de como pensamos sobre sustentabilidade da dívida, porque ela cria restrições para que os países possam acessar financiamento barato.
Esperamos que o G20, através do Brasil, possa levar adiante esse tipo de ideia. Acho que temos que chegar a um ponto em que as maiores economias do mundo se sintam confortáveis com a dívida. Percebam que é razoável dizer que sim, novos empréstimos são bons e importantes. O que o G20 pode fazer é trabalhar para fornecer recursos mais baratos e de longo prazo. Isso é necessário porque há muitas lacunas, de financiamento, de infraestrutura… A África é enorme e os países precisam gastar uma grande parte de seu PIB na construção de infraestrutura. Temos que lembrar que o mundo se beneficiará disso.
O continente africano é o lugar onde temos a população mais jovem e os maiores recursos naturais do mundo. Quanto mais produção, mais logística e infraestrutura no continente africano, mais o mundo se beneficiará. É nisso que o G20 estará investindo ao lidar com esses tipos de mecanismos para fornecer mais financiamento concessional de longo prazo.
[…] apresento possíveis soluções que o G20 poderia considerar. Uma é um clube de mutuários que trabalham juntos para reunir recursos e juntar seus patrimônios (ativos ou garantia oferecidos como proteção em transações) para arrecadar novos financiamentos mais baratos e concessionais.
Outra solução é dobrar as cotas do FMI para os países africanos, para que eles possam ter acesso ao financiamento de liquidez, quando necessário, e especialmente onde há desafios externos. A terceira ideia é uma reforma de como pensamos sobre sustentabilidade da dívida, porque ela cria restrições para que os países possam acessar financiamento barato.
G20 e negociação da dívida
A presidência brasileira do G20 é a primeira na qual a União Africana é membro pleno. Ela representa os países do continente e permite compartilhar novos pontos de vista. É muito importante discutir essas questões. Penso o G20 como o equivalente ao Conselho de Segurança da ONU, mas especificamente para questões econômicas e financeiras. O G20 tem um grande poder econômico e a capacidade de lidar com essas questões de maneira realmente abrangente. Têm todas as ferramentas, a questão é: eles farão isso? E é por isso que a presidência é tão importante. A presidência é quem acaba pressionando os outros membros do G20 a terem um impacto ao pensarem fora da caixa. É isso que pessoas como eu tentamos ajudar a alcançar, quando temos a oportunidade e somos gratos por isso.
A presidência brasileira do G20 é a primeira na qual a União Africana é membro pleno. Ela representa os países do continente e permite compartilhar novos pontos de vista. É muito importante discutir essas questões. Penso o G20 como o equivalente ao Conselho de Segurança da ONU, mas especificamente para questões econômicas e financeiras.
Reforma dos bancos multilaterais de desenvolvimento (MDBs)
Deixe-me dar um exemplo específico de como o sistema multilateral de desenvolvimento é desafiador e problemático para os países africanos. Se você é um país de renda baixa e está planejando se tornar um país de renda média até 2025, ou até 2030, você só poderá obter financiamento concessional barato através da Associação Internacional de Desenvolvimento (AID) do Banco Mundial, até atingir certo limite. Assim que você alcançar um PIB per capita que o coloque no nível (de um país) de renda média, você será graduado, o que significa que terá que obter financiamento mais caro. Isso é um verdadeiro desincentivo no sistema e esses tipos de reformas que precisamos.
Pode parecer técnico ou muito difícil de mudar. Porém é realmente necessário pensar no sistema do ponto de vista do usuário, de quem recebe o empréstimo, e dizer: como resolvemos esses tipos de resultados estranhos, que até desincentivam os países de se declararem países de renda média, quando realmente são países de renda média?
Reforma no sistema de empréstimos internacionais
Há muitas reformas necessárias no sistema financeiro internacional para torná-lo mais direto para quem pega o empréstimo, em vez dos credores, e realmente priorizar os mutuários. São eles que precisam atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Há muitas oportunidades. Uma chave é reforçar como os mutuários podem trabalhar juntos.
Tivemos essa ideia do equivalente ao que era conhecido nos círculos de desenvolvimento na década de 1970 como o Grameen Bank. Essa era a ideia, de que os aldeões se reuniram, pois separados não teriam acesso a financiamento e juntaram suas finanças e seus recursos para poder obter dinheiro para iniciar novos negócios. Nossa ideia é transformar isso no nível soberano, para que os países tenham essa ideia de microfinanças.
Com esse tipo de projeto, o sistema multilateral de desenvolvimento poderia oferecer muito mais financiamento concessional, de longo prazo para as necessidades dos países em desenvolvimento. Esperamos que muitos dos bancos multilaterais de desenvolvimento comecem a trabalhar nessa ideia.
Razões pelo aumento do endividamento dos países africanos
A principal razão para o aumento do endividamento dos países africanos é atender às necessidades de um desenvolvimento sustentável. Vemos os resultados disso em todos os lugares, desde novas ferrovias, estradas, até gastos com educação e saúde. Mais recentemente, muitos países africanos também tiveram que simplesmente gastar mais por causa das taxas de juros mais altas e dos maiores desafios com suas moedas.
São desafios que não esperávamos. São choques do sistema, para pessoas e outros países também. No continente africano muitas vezes dependemos do resto do mundo, por exemplo, para comprar nossos produtos ou alguns de nossos recursos e isso cria uma vulnerabilidade extra, que também precisamos de dívida para resolver. Precisamos aumentar os fluxos de financiamento baratos, para criar a infraestrutura que nos permita realmente produzir essas coisas por conta própria, em vez de depender do resto do mundo.
Pode parecer técnico ou muito difícil de mudar. Porém é realmente necessário pensar no sistema do ponto de vista do usuário, de quem recebe o empréstimo, e dizer: como resolvemos esses tipos de resultados estranhos, que até desincentivam os países de se declararem países de renda média, quando realmente são países de renda média?
Um mercado próprio de financiamento e consumo para o Sul Global
Muitos países começaram a trabalhar na criação de mercados de dívida doméstica, onde você pode ter fundos de pensão ou grandes investidores que são capazes de emitir dívida e tomar débitos do governo ou oferecer créditos ao governo para realizar novos projetos. Devemos lembrar que, para muitos países, o mercado doméstico depende muito do mercado externo. Se você está tomando emprestado com uma alta taxa de juros, é provável que suas taxas de juros domésticas também sejam mais altas. E isso, por si só, é uma restrição no mercado.
Ainda precisamos sempre lidar com as questões externas, bem como as domésticas, mas podemos trabalhar em todas elas juntas. Muitos países africanos estão fazendo isso e construindo, tentando mobilizar recursos no nível doméstico tanto quanto possível. Um dos principais desafios que enfrentam, especialmente para acessar financiamento para o desenvolvimento do setor privado, é que eles têm essa coisa que se tornou conhecida como o “prêmio” de risco da África.
Isso é mostrado em muitos estudos, que há um ônus de risco que está muito claramente com os países africanos. Por causa dessa especulação, significa que os países africanos tendem a pagar mais juros, também têm um prazo menor para pagar a dívida, porque são vistos como mutuários ruins. Mas isso não é verdade. Se você olhar para a realidade, os dados mostram que eles não são.
Eles não são maus devedores, eles se preocupam em garantir que paguem, reembolsem a tempo e assim por diante. Estamos fazendo medidas para tentar resolver esse “prêmio” de risco, tanto por instituições financeiras internacionais quanto por agências de classificação de risco. Mas precisamos, novamente, pressionar muito essas organizações para resolver esse viés de onde vêm e que tipo de análise fazem.