Por Ivo Augusto de Abreu Pugnaloni
Maio, 2024 – Em 9 de fevereiro passado publiquei um artigo sobre pesquisa da Universidade da California que estudou mais de 170 mil poços em 40 países e encontrou dados alarmantes sobre o rebaixamento do nível das reservas de água subterrânea em todos os continentes. Entre as possíveis causas, o aumento da velocidade de escoamento das águas das chuvas, devido ao desenfreado aumento das monoculturas de alimentos, implantada com a derrubada completa das matas, não apenas ciliares, mas da vegetação original de todas as áreas.
Menos de 3 meses depois, uma catástrofe cataclísmica ocorre nos Pampas Brasileiros enquanto uma catástrofe menos “fotogênica” para os padrões da imprensa corporativa, ocorre na Amazônia. Nos dois casos, não precisa ser engenheiro agrônomo, nem eletricista, civil, nem economista, nem sociólogo, nem de esquerda ou direita para concluir que há muita burrice sendo feita em todos os cantos do planeta. E isso está sendo feito a nível mundial tanto em nome do “conceito do politicamente correto”, como contra esse conceito, pela estupidez da negação da ciência em tudo por parte dos ignorantes que, pelas redes sociais passaram a orgulhar-se da própria ignorância. E “simpricidade”.
A Catástrofe que poderia ter sido evitada
No caso das enchentes no Rio Grande do Sul, o exemplo é mais claro: o presidente passado fiel ao seu credo de extrema direita, mas que também agrada á direita dita “civilizada”, deixou no Orçamento da União para 2024, apenas incríveis 26 mil reais na rubrica “atendimento de desastres naturais”. Mas gastou, apenas com os cartões corporativos da presidência espantosos 45 milhões de reais em quatro anos. Incluídos aí, milhares de litros de gasolina e cerveja para animar motociatas e passeios de jet sky para agradar os que são crentes de sua origem divina e messiânica. Enquanto isso várias regiões e cidades do mundo, como as do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo usam em mormente em áreas urbanas, reservatórios de amortecimento de cheias com eficiência comprovada, mas ainda muito pouco projetados e construídos. Principalmente nas zonas rurais.
Isso prova que a falta de novas usinas hidrelétricas com reservatórios não apenas provoca o encarecimento da energia, mas deixa regiões inteiras à mercê de inundações que estão previstas há anos. Mas não apenas reservatórios de hidrelétricas, mas de água para abastecimento de cidades, produção de pescado, para uso em irrigação com água de superfície e não das reservas subterrâneas no plantio de cereais.
O papel das “demoníacas” hidrelétricas nas estiagens e nas enchentes
“Demonizadas” no Brasil pelos que usam o “politicamente correto” de forma muitíssimo incorreta, as usinas hidrelétricas, quando deixam de ser construídas num local apropriado são substituídas por termelétricas pertencentes a grupos econômicos familiares que monopolizaram a produção de energia durante as estiagens. Afinal um dos dois tipos precisa ser usado quando a energia solar acaba às 18 hs: ou as hidrelétricas, que usam água corrente ou as termoelétricas, que queimam e destroem combustíveis fósseis poluentes, caros e importadas e produzem energia 10 vezes mais cara do que as primeiras.
Para entender o papel das “hidros” basta pensar na quantidade de água doce que caiu em forma de chuvas durante 135 anos que elas existem no Brasil e foi retida por mais tempo sem aumentar os caudais descontrolados, que foram provocados pelo desmatamento irracional em busca do lucro máximo dos negócios agrícolas. Quantos quintilhões de metros cúbicos de água caídas dos céus de forma torrencial, terão ido descansar tranquilos, domados, no fundo dos reservatórios das hidrelétricas e dos sistemas de abastecimento das cidades? E mais ainda: quanta água, nesse momento em que você lê esse artigo está percolando silenciosamente, pelo meio da argila, do arenito, do calcáreo, do próprio basalto e do diabásio, sendo assim purificada, para só então descer e ir descansar por milênios nos limpíssimos reservatórios subterrâneos dos aquíferos Guarani, As hidrelétricas, tão combatidas, ainda iriam nos permitir gerar energia elétrica à noite para complementar a energia solar e eólica que não funcionam nesse longo período de 16 horas, hoje produzida por termelétricas fósseis poluentes e 10 vezes mais caras. As hidrelétricas pequenas, micro, mini, médias e grandes, nos permitem abastecer cidades, criar muito pescado, irrigar a agricultura com métodos muito mais eficientes e baratos do que o custoso pivô central, grande consumidor de energia. Ao contrário do que afirmam os que criticam as hidrelétricas para estimular o investimento em outras fontes, a construção de novos reservatórios é extremamente benéfica a todas as fontes renováveis pois serve de bateria natural para elas além de fazer muito bem ao ambiente e às pessoas, por várias razões, mostradas aqui.
O individualismo mata.
O esforço coletivo preserva. Reduzir a velocidade de escoamento superficial da água numa vasta região plana como o Pampa não é um sonho impossível. Basta usar ao mesmo tempo a ciência, a engenharia, a técnica e acima de tudo, grande dose de interesse público, de senso de coletividade. Se a vegetação original for removida, a velocidade de escoamento vai aumentar, pois menos água será absorvida para descer ao subsolo, formar arbustos, gramíneas e árvores adaptadas há bilhões de anos naquela terra. Ao contrário do que pensam os que não gostam de pensar muito, as hidrelétricas não são culpadas por enchentes, se forem bem construídas. É exatamente o contrário, pois se não fossem as poucas hidrelétricas implantadas no Rio Grande do Sul, o recurso hídrico nelas contido estaria correndo direto para o Oceano Atlântico, com ainda mais velocidade, fora de qualquer possibilidade, mesmo mínima, de controle. Sem haver obrigação de que os governos estaduais usem maior rigor científico ao licenciar ambientalmente o uso da terra arável, tudo isso vai se repetir, várias vezes a cada 11 ou 13 anos. Pois é isso o que mostram as séries históricas das afluências em cada uma das 1.960 estações fluviométricas (medem níveis e/ou vazões de rios) e 2.840 estações pluviométricas (medem chuvas). existentes no Brasil.
Deveria a lei prever que cada porção de terra desmatada desde o início da ocupação original de uma região, precisa haver compensação com a construção, pelo atual proprietário, de pequenos açudes e tanques de peixe, que reduzissem a velocidade de escoamento e armazenassem água em milhares de propriedades, propiciando tempo para sua evaporação e percolação. Ao invés de consumir recursos e onerar o dono, esses tanques dariam a ele nova fonte de renda e mais empregos na região, reduzindo o êxodo rural, que está destruindo países como Portugal, Itália e Espanha. A água deve ter da humanidade que destruiu a vegetação para produzir alimento, o dever de construir reservatórios superficiais que permitam que ela possa percolar e descer às reservas subterrâneas e não apenas correr céleres para o mar, causando enchentes e erosão.
O rebaixamento do nível das reservas subterrâneas mundiais.
Numa interessante reportagem da CNN Brasil, um estudo realizado pela Universidade da California, em mais de 40 países, com um universo de 140 mil poços, entre 2000 e 2022, provou que o nível das reservas subterrâneas diminuiu pelo menos10 cm ao ano em 36% dos poços pesquisados ou 50.400 poços. O estudo aponta como principais causas da espantosa redução de nível e de volume reservado, o exagerado aumento dos processos de irrigação que usam água subterrânea, bem como a alteração no regime de chuvas, como se evidenciou agora no Rio Grande do Sul e na Amazônia. A foto da esquerda é a original da matéria da CNN, que pode ser acessada nesse link. É pena que, aqueles que apenas olharem a foto e só lerem a manchete, poderão pensar que culpa da queda do nível dos aquíferos é dos pequenos agricultores, que usam sistemas quase artesanais como o da imagem. E não os grandes projetos como os da foto da direita, com centenas de pivôs centrais, que em vez de ter seus próprios reservatórios como fontes de água superficial usam 60% do volume das outorgas de agua subterrânea limpa e cristalina, que não precisava ser usada para irrigar plantas acostumadas por bilhões de anos a consumir agua superficial, cuja composição é totalmente diferente e apropriada. A foto da esquerda no Amazonas, lembra os locutores dos telejornais, que durante o apagão elétrico de 2001, insinuavam que a culpa da redução forçada de 25% do consumo de energia das indústrias ordenado pelo governo federal não era da falta de planejamento por parte dos responsáveis e pela falta proposital de investimento.
A culpa do povo brasileiro, “que gasta muita água sem necessidade”.
Enquanto esse julgamento era emitido, as cenas eram de uma dona de casa, lavando um carro com mangueira, na porta da garagem, vestida com um roupão, chinela havaianas e com “bobs” de enrolar o cabelo. É notória, atualmente, a mesma dose de mentira sendo aplicada nas pessoas tirando proveito da falta de informação verdadeira. E assim como nunca vimos os locutores da TV reconhecerem que o apagão aconteceu porque os governos federais simplesmente “esqueceram” a necessidade de construção de novas hidrelétricas no Brasil, não se verá interesse em apurar em profundidade nada que valha a pena. Fernando Henrique, para resolver o problema de falta de novas hidrelétricas que ele mesmo criou, lançou em 1999 o Programa Prioritário de Termoelétricas (PPT), no qual seriam empresas privadas a abastecer esse enorme mercado. E isso, apesar de ter sido alertado por professores e especialistas como Luiz Pinguelli Rosa, Ildo Sauer, Roberto D’Araujo e outros. Ocorreu que as empresas privadas não compraram a ideia do PPT.
O planejamento da escassez, ou “Unindo o inútil ao desagradável”
Com essa negativa dos estrangeiros em investir nas termoelétricas do PPT, a Petrobrás foi chamada a fazê-lo. Mas também os familiares do ex-presidente Sarney e o grupo do chamado “rei do Gás”, Carlos Suarez, um dos donos da Construtora OAS. Breve eles terminaram por ser os “heróis” que mais lucrariam, pois, afinal operando a nível particular acabaram livrando os brasileiros do risco de passar por um novo apagão. Risco que eles mesmo provocaram, pela sua “providencial” inação quando atuavam a nível público. Com o PPT, os presidentes Fernando Henrique e Lula, (é verdade que Lula “herdou” o Programa já em andamento) instalaram 14 GW dessas usinas termoelétricas fósseis, uma Itaipu de Poluição – em lugar de construir hidrelétricas que armazenassem água doce, reduzissem a velocidade de seu escoamento, possuíssem reservas adicionais de capacidade para estocagem, evitando ou reduzindo os efeitos de grandes secas e grandes enchentes. Para dar uma ideia do que foi o PPT em 2004 e 2005, devido ao racionamento, a expansão da capacidade total do sistema no Brasil, com o 3º maior potencial hidrelétrico do mundo se deu em mais de 70% por meio de termelétricas fósseis. Em 2010, depois do leilão de 2008, essa expansão por térmicas, chegou a 48%, tudo isso se constituindo num aumento para lá de suspeito, quando se considera que ter existido um proposital bloqueio à construção de novas hidrelétricas por meio de erros nas diretrizes do leilão. Se somarmos todos os aumentos anuais das térmicas entre 1995 e 2023 a potência total instalada das termelétricas cresceu 664% contra apenas 240% das hidrelétricas. A mesma evolução ocorrendo nas emissões de gases de efeito estufa e particulados, sujando nossa matriz que era 85% limpa.
O monopólio da água doce
A foto da direita mostra o rio Itaguari, no Oeste da Bahia, cheio de projetos de irrigação onde as outorgas de água concedidas pela ANA foram tantas e de tal montante que o rio perdeu 90% de sua vazão. Isso prova que as outorgas de água subterrânea e superficial para grandes projetos agrícolas estão simplesmente consumindo quase toda a água dos aquíferos e lençóis freáticos. Não são os pequenos agricultores familiares que tem esse papel. Para piorar a situação, a água que cai do céu, sem hidrelétricas para reservá-la, vai direto para o mar e não alimenta as reservas subterrâneas. E assim, deixa de produzir infiltração suficiente que possa compensar o volume que a irrigação retira dos lençóis e dos aquíferos. É evidente que, se essa água toda, que hoje é perdida indo direta para o mar, fosse armazenada nos lagos de reservatórios, os fenômenos da percolação e da evaporação da maior superfície dos lagos formados iriam alimentar as reservas subterrâneas. Elas, as águas, estariam fazendo aquilo que Guilherme Arantes diz, “voltando, humildes, para o fundo da terra”, como diz a linda sua canção de 1981, mas extremamente atual, “Planeta Água”. Para ter uma ideia da quantidade de água que é retirada para irrigação, a EMBRAPA mostra em seu site que, em 2017, por exemplo, esse valor representou 52% do total; já em 2016, foi igual a 46,2%. Esse valor varia muito entre as regiões hidrográficas. Por exemplo, em 2006, as outorgas para irrigação representaram em média 46,7% do total. Na região do São Francisco, elas representaram 68,2%. Já na Bacia do Rio Paraná, região que possui a maior capacidade instalada de geração de energia, existem 176 usinas hidrelétricas, inclusive Itaipu, Furnas, Porto Primavera e Marimbondo. Nessa bacia as outorgas para irrigação representaram apenas 21,9% do total.
Ao contrário do que diz o título da matéria, a água não está “acabando” no mundo, mas sim, indo mais rápido para o mar do que poderia ir se não desmatássemos o solo para a monocultura da soja e do milho e o pastoreio, ou usássemos as hidrelétricas para reservá-la, mitigando os efeitos da irrigação com água subterrânea, um recurso que nos possibilita alimentos mais baratos, ter menos gente passando fome, vivendo mal e ficando doente. Por isso, alguém que hoje seja contra hidrelétricas precisa saber que não querer armazenar água doce, – um recurso precioso, algo que já falta no mundo todo -, está na prática querendo secar o planeta, elevar sua temperatura, pois deixar a chuva cair e não guardar a água mas deixa-la correr para o mar, está cometendo quase um crime de genocídio a longo ou médio prazo. Ainda mais constatando que população brasileira dobrou entre 1980 e 2022. Teimar o governo em não construir novas hidrelétricas até como formas de armazenar água doce, ou em promover propositalmente o não aproveitamento do potencial hídrico e hidráulico da União, seria um absurdo. Negar-se a usar a água, seja para gerar energia, seja para abastecer às cidades e às reservas subterrâneas do país, enquanto a população e o consumo de água e de energia crescem, só poderia ser resultado de ingenuidade ou má gestão das riquezas do país. Ou de uma omissão que, um dia, poderia até mesmo, vir a ser considerada criminosa como agora poderá ocorrer não apenas com o Governo do Rio Grande do Sul, mas de qualquer estado e da União, se a Justiça realmente puder funcionar no Brasil. Ainda mais quando se considera que tal “proibição” de construção de hidrelétricas não existe em lei, mas apenas nos é imposta por organizações ditas “não-governamentais” em sua maioria estrangeiras, subvencionadas por empresas estrangeiras do ramo de extração, produção e importação de combustíveis queimados por termelétricas fósseis.
A Terra é o Planeta Água.
Pela convocação da conferência nacional de energia. A Terra deve ser defendida por todos e ela será, desde que tudo que for importante seja pensado e planejado com ampla participação popular e não feito de qualquer jeito, cada um por si, como se o mundo não fosse de todos. E pior ainda, segundo a vontade de quem tenha mais dinheiro para comprar mais espaço publicitário e desacreditar às demais opiniões e fontes de energia, de conhecimento e de alimentos. Nesse sentido, a promoção pelo governo federal de conferências nacionais de energia e recursos minerais a cada dois anos, preparadas nos estados e municípios, tal como existem as conferências nacionais de meio ambiente, saúde, educação, economia solidária, comunicação e assistência e mais sessenta outras, seria o caminho certo. Precisamos que o planejamento do nosso crescimento econômico, social e energético, seja feito de forma estratégica, com uma prática cooperativa e não competitiva-, visando apenas o máximo lucro hoje, sem qualquer preocupação com o futuro dos nossos filhos e netos. Fica para vocês, mais uma vez, o convite para ouvir “Planeta Água”. de Guilherme Arantes, música de 1981.Preste atenção à profética e magnifica letra. Saboreie a melodia emocionante. E pense bem no que está acontecendo à nossa volta.
*Ivo Augusto de Abreu Pugnaloni é engenheiro eletricista. Foi presidente da COPEL DISTRIBUIÇÃO, e diretor da COPEL SA, do Instituto Estratégico do Setor Elétrico ( ILUMINA), membro da equipe do Instituto CIDADANIA que formulou as “Diretrizes do Setor Elétrico” do candidato Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, fundador e primeiro presidente da ABRAPCH, associação brasileira de pequenas hidrelétricas, professor do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná, Secretário Adjunto de Transportes de Curitiba e membro do Conselho Estadual de Ciência e Tecnologia. Hoje é presidente da ENERCONS Consultoria em Energias Renováveis. ivo@enercons.com.br www.enercons.com.br