De acordo com o Protocolo de Palermo – acordo internacional firmado no ano de 2000 e ratificado pelo Brasil em 2004 e internalizado no Artigo 149A do Código Penal brasileiro –, o tráfico de pessoas é definido como “o agenciamento, o aliciamento, o recrutamento, o transporte, a transferência, a compra, o alojamento ou o acolhimento de uma pessoa, recorrendo à grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, e tendo como finalidade: submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo ou a qualquer tipo de servidão, ou à exploração sexual, ou à adoção ilegal, ou à remoção de órgãos ou partes do corpo”.
“Muitas vezes, o fazendeiro diz e promete Deus e os céus para cada um de nós, mas aí se torna um ato escravo, como já aconteceu comigo mesmo”, revela Francisco Batista, camponês submetido à condição de escravizado no Maranhão. A fala faz parte do relato feito por ele no lançamento da publicação anual da CPT “Conflitos no Campo Brasil 2023”, que ocorreu em Brasília, em abril deste ano. A história de Francisco ilustra muitos outros casos, onde há o processo de migração em busca de trabalho, baseado em falsas promessas por aliciadores que garantem salário e carteira assinada.
Segundo o programa “Escravo, nem pensar!”, coordenado pela ONG Repórter Brasil, “o tráfico de pessoas sempre tem como finalidade a exploração. Em muitos casos, as vítimas são submetidas a condições indignas de trabalho, como nos casos de trabalho escravo contemporâneo e em situações de exploração sexual”. Para que uma pessoa seja considerada como traficada, não há necessidade de ter sido transportada ou deslocada, basta que seja recrutada, acolhida ou alojada para fins de exploração.
Trabalho escravo
“Por muito tempo, o tráfico de pessoas parecia não ter nada a ver com trabalho escravo, de forma que as instituições competentes para tratar destas duas violações são até hoje distintas”, aponta Xavier Plassat, membro da coordenação colegiada da campanha permanente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), “De Olho Aberto para não Virar Escravo”. Contudo, com as definições trazidas pelo Protocolo de Palermo e incorporadas na legislação brasileira, a proximidade entre as duas temáticas tornou-se mais evidente.
Segundo Xavier, há uma relação intrínseca entre o tráfico de seres humanos e o trabalho escravo, uma vez que o propósito mais habitual do tráfico é a exploração da mão de obra em condição de escrava, seja laboral ou sexual. “Da mesma maneira, a prática do aliciamento – característico de muitas situações de trabalho escravo – se encaixa nos ‘meios’ apontados na definição legal do tráfico”, completa. Ele também aponta que o combate desses problemas passa pela interação entre instituições e políticas públicas: “equivocado seria separar esses dois crimes”.
Informações divulgadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em 2023, apontam que quase 2 mil pessoas foram identificadas como vítimas de tráfico humano para trabalho escravo no Brasil em 2022. No ano passado, foram identificadas 1.970 vítimas. O levantamento mostra ainda que Minas Gerais, Maranhão e Bahia se destacam como os estados de maior origem dos trabalhadores traficados. Já Minas Gerais, Goiás e Rio Grande do Sul são os principais destinos desses trabalhadores.
Já os dados da CPT dão conta de que, no ano passado, 3.191 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo no Brasil – desse total, mais de 2.600 pessoas foram vítimas do trabalho escravo em atividades rurais. Em recorte por regiões do país, o Sudeste liderou o ranking com 89 registros, seguido do Nordeste (88), Sul (86), Norte (43) e Centro-Oeste (38).
Chega de Escravidão!
O combate ao trabalho escravo está nas raízes da Comissão Pastoral da Terra. Seu nascimento, em 1975, ocorreu quatro anos após a publicação da carta pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, denúncia feita por dom Pedro Casaldáliga, um dos fundadores da CPT, e que expôs a persistência do trabalho escravo no Brasil. Desde então, o seu compromisso com a dignidade e com a vida fazem parte da missão da Pastoral.
“Coube à CPT botar a boca no trombone e denunciar essa situação, apontando simultaneamente como havia uma relação estrutural, sistêmica, entre a persistência e reprodução da miséria, de um lado, e este modelo de desenvolvimento predador da vida – da floresta, das águas, dos povos – do outro lado. Por isso, na visão pastoral da CPT, lutar por terra e território é inseparável de lutar por vida digna e por trabalho decente, longe da escravidão”, explica Xavier Plassat.
Em 2024, a CPT lança, por meio de suas redes sociais, a campanha de sustentabilidade “Chega de Escravidão” e convida todos aqueles que se indignam com o trabalho escravo e lutam por um mundo mais justo a fazer parte dessa ação.
Gilmar Ferreira, coordenador da CPT Bahia, chama a atenção para a urgência de se compreender que a escravidão ainda existe e pode estar muito mais perto do que a gente imagina. “É importante sempre refletir, questionar a origem dos produtos que estão em nossa mesa, se vêm de propriedades ou empresas flagradas com trabalho escravo”, aponta ele.
“Nesse sentido, a CPT clama por justiça e se coloca como instrumento a serviço dos trabalhadores e trabalhadoras na luta contra o trabalho escravo. É importante também compreender que o trabalho escravo fere a decência e a dignidade humana, que o trabalho é um direito, mas deve respeitar o ser humano em toda sua essência e a vida em toda sua plenitude”, completa.
Saiba mais sobre a campanha e contribua com a continuidade da ação da CPT pelo site chegadeescravidao.org.br.